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Assassinato da estudante brasileira na Nicarágua revela timing da guerra híbrida

O assassinato da estudante brasileira de medicina na Nicarágua, em meio à violência nas manifestações contra o governo Daniel Ortega, é mais uma evidência de que a crise naquele país segue o roteiro já visto das guerras híbridas no Brasil e no mundo. Timing perfeito: no momento em que a grande mídia internacional já está retratando a “Revolução Popular Híbrida” nicaraguense como “espontânea” ou “o novo” que veio substituir a velha política carcomida pela corrupção, surge a necessidade de uma vítima feminina exemplar. Assim como no Brasil, quando vítimas femininas anônimas foram  repercutidas pela grande mídia e redes sociais durante os protestos de 2013 a 2016. E como foi a execução de Marielle Franco. É sempre a deixa para a grande imprensa entrar em ação com um discurso único: “protestos pacíficos” que são violentamente reprimidos por um governo corrupto. Como sempre, a cobertura dos eventos descontextualiza o cenário geopolítico por trás de uma crise nicaraguense que surge (como em toda Guerra Híbrida) após uma reeleição democrática: a parceria multipolar da Nicarágua com China e Rússia para a construção do Canal Transoceânico para fazer frente ao Canal do Panamá, controlado pelos EUA.

 

Velhas guerras, novas estratégias. Se pela Convenção de Genebra (tratado de 1949 que define direito e deveres de pessoas e combatentes em tempos de guerra) mulheres e crianças, como de resto a população civil, são protegidos por diversos artigos e protocolos adicionais, com as modernas táticas de guerra híbrida elas se tornam as principais vítimas.

A questão é que a Guerra Híbrida não é uma guerra convencional: é a uma guerra semiótica: uma combinação de operações secretas, pressão diplomática, coerção econômica, ciberataques e muita desinformação – sempre procurando apresentar a ideia de uma confrontação entre um corpo policial repressivo do governo-alvo do momento contra “protestos pacíficos”.

Seguindo o roteiro do cientista político Gene Sharp, da chamada “luta não-violenta” implementada pelos manuais de intervenção híbrida dos EUA, “protestos pacíficos” se transformam rapidamente em incêndios, saques, bloqueios, nos quais manifestantes se confundem com milícias armadas. Sempre visando criar eventos para repercutirem midiaticamente como bombas semióticas para opinião pública. E mulheres e crianças são as vítimas exemplares.

A morte da estudante brasileira de medicina Raynéia Lima em Manágua, capital da Nicarágua, soma-se à estatística de centenas de mortos desde que os protestos explodiram no país em outubro.  Ela voltava para casa quando seu carro foi alvejado supostamente por paramilitares que tomaram o Campus da Universidade Nacional Autônoma.

O sintomático nesse trágico episódio foi a consonância da narrativa da grande mídia e do governo brasileiro: a condenação imediata do “aprofundamento da repressão” aos protestos na Nicarágua, antes de qualquer investigação ou de declarações “do outro lado”. De cara, a execução da estudante brasileira foi colocada na conta do governo Daniel Ortega.

É como se o assassinato fosse uma espécie de “deixa” para colocar no ar uma narrativa já pronta.

Crise “inesperada”

E nem é necessário se aprofundar na diferença de tratamento dada pelo governo do desinterino Temer: enquanto o episódio das 51 crianças brasileiras presas separadas dos pais (imigrantes brasileiros nos EUA sem documentos) foi tratado de forma burocrática e protocolar, no assassinato de Raynéia a diplomacia do governo brasileiro mostrou uma indignação poucas vezes vista: o Itamaraty convocou a embaixadora da Nicarágua para dar explicações, enquanto o embaixador brasileiro naquele país foi chamado de volta a Brasília.

O fato é que desde 18 de abril desse ano começou aquilo que a grande mídia vem descrevendo como “um amplo e popular levante” contra o presidente do país centro-americano Daniel Ortega.

A crise começou de uma forma inesperada: pequenos grupos protestavam contra a reforma do sistema previdenciário quando foram violentamente atacados por supostos grupos pró-governo. Os vídeos da repressão foram amplamente divulgados nas redes sociais – foi o rastilho de pólvora aceso para acabar gerando mais protestos e a espiral da violência e mortes nas ruas.

 Desde então a crise nicaraguense segue o mesmo script da crise brasileira a partir das chamadas “jornada de junho” de 2013, marco da guerra híbrida brasileira que culminou com o impeachment de 2016.

Financiamento de grupos capazes de articular protestos nas ruas; pequenos grupos promovendo ações extremamente violentas para repercussão midiática, provocando levantes dos setores médios da sociedade. E o pano de fundo diário é a mídia corporativa, articulada em um discurso unitário de denúncia de “corrupção”, críticas ao afastamento do país em relação aos EUA e promoção do ideário neoliberal. E, principalmente, articulação de agentes internos no próprio Estado – judiciário, polícias etc. É um roteiro já assistido nas diversas primaveras que correram o mundo.

Não são mais necessárias bombas e mariners: a Guerra Híbrida encontra aqueles que façam o trabalho internamente em um país.

O elemento feminino de propaganda na Guerra Híbrida

Mas o assassinato brutal da estudante brasileira coloca em evidência um elemento importante na receita de uma Revolução Popular Híbrida (RPH): a vítima feminina como importante peça de propaganda.

O momento certo da vítima feminina aparecer é quando a grande mídia internacional já está retratando a RPH como “popular”, “espontânea” e como “o novo” na velha política carcomida pela corrupção.

Há quatro maneiras de produzir essa vítima: encenação (ex: a iraniana Neda Agha-Soltan, o “anjo da liberdade”, olhando para a câmera enquanto aplicava sangue falso em si mesma); glamorização (Caetano Veloso tecendo elogios a mulheres black blocs como “os olhos amendoados do anarquismo); dar ampla repercussão midiática e em mídias sociais de mulheres vítimas de ações repressivas; encontrar uma fanática suicida; ou criar uma execução real.

E a RPH nicaraguense optou pela última alternativa.

No caso da RPH brasileira não faltaram bombas semióticas da vítima feminina:

(a) Sob a rubrica diária de “País em Protesto” na grande mídia, foi dado grande destaque a duas manifestantes femininas atropeladas em protestos na cidade de Ribeirão Preto quando a Land Rover de um empresário. Vídeo circulou em redes sociais, dando mais um empurrão simbólico às “jornadas” de junho de 2013 – clique aqui.

(b) O episódio de mulheres salvando cães beagles cobaias em um Instituto farmacêutico em São Roque/SP em 2013: mulheres de classe média salvando animaizinhos em meio a fogo e quebradeira de black blocs. Claro, para jogar a culpa no Governo e Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) – clique aqui.

(c) O fusca incendiando com uma família dentro (marido, esposa e filhos) pegos “de surpresa” em uma manifestação em São Paulo. Mídia dando destaque para imagens da mãe desesperada carregando a filha no colo, escapando das chamas do veículo.

(d) Editorial de uma revista feminina com ensaio fotográfico da atriz Bárbara Paz fazendo o personagem de uma black bloc sendo reprimida por forças policiais.

Apesar de décadas de movimento feminista e afirmação definitiva das mulheres na sociedade, elas são símbolos midiáticos de fragilidade. Em situações de perigo, então, assumem um significado poderoso (muito explorado em filmes de ação). O detalhe é que, em geral, as vítimas femininas são mulheres de classe média (público alvo das RPHs para acender o rastilho da indignação) que recebem o destaque nas edições das imagens.

A vítima exemplar

Mulheres pobres obtêm um rendimento limitado – produzem no máximo comoções humanitárias. Já mulheres de classe média (que teriam “uma vida inteira pela frente”) rendem muito mais do que comoções: rende ódio!

Assim como Marielle Franco no Brasil foi a vítima feminina semioticamente perfeita para as necessidades ideológicas da intervenção militar no Rio (foi assassinada não porque era uma vereadora que fiscalizava a intervenção e denunciava a violência policial em áreas pobre, mas porque era mulher, negra e LGBT – ou seja, não era “pobre”), da mesma forma a estudante brasileira foi o elemento de propaganda perfeito para os propósitos da atual RPH nicaraguense:

(a) uma jovem inocente assassinada – não participava dos protestos por ser estrangeira. Mas o detalhe de ser uma jovem universitária e de classe média tem um alvo claro: os setores médios daquele país. Para acirrar ainda mais os protestos contra um governo supostamente corrupto e, o que é pior, que não se intimida em usar táticas violentas de repressão.

(b) a vítima brasileira: elemento propagandisticamente calculado para gerar o efeito ainda maior de isolamento da Nicarágua em relação à América Latina.

(c) uma vítima mulher: simbolicamente importante contra Daniel Ortega, que ajudou a derrubar a dinastia Somoza na conhecida Revolução Sandinista, em 1979. As mulheres estiveram ativamente presentes tanto nas guerrilhas urbanas ocupando cargos de comando, quanto na reconstrução do país, às vezes liderando povoados inteiros. E não só na Nicarágua, mas também em movimentos revolucionários em Cuba, El Salvador e no estado mexicano de Chiapas – leia KAMPWIRTH, Karen. Women Guerrilla Movements: Nicaragua, El Salvador, Chiapas, Cuba. Pennsylvania State University Press, 2002.

É a vítima exemplar para ajudar a desconstruir a imagem de herói revolucionário de Ortega (reeleito em 2016 com 70% dos votos), como “aquele que não é mais um revolucionário idolatrado”, como repete a grande mídia internacional.

E como sempre, para as bombas semióticas da RPH serem bem sucedidas, a grande mídia precisa descontextualizar a crise nicaraguense para produzir esquecimento.

Não há qualquer discussão sobre o marco geopolítico que serve de pano de fundo e motivação para todos os trágicos acontecimentos na Nicarágua: o país é anfitrião do planejado Canal Transoceânico da China, cujo objetivo é rivalizar com o Canal do Panamá – controlado de fato pelos EUA.

Nos últimos anos Moscou e Manágua aprofundaram suas parcerias militares, num esforço do governo em buscar apoios multipolares com Rússia e China, para as quais o Canal Transoceânico é emblemático.

Na verdade a atual crise nicaraguense é uma continuação das operações dos EUA em seu quintal geopolítico da América Central: imediatamente após a Revolução Sandinista, a CIA organizou operações de tráfico de armas para o Irã com o objetivo de financiar os “contra” nicaraguenses. Um plano que ficou conhecido como “Operação Irã-Contras” e que resultou num escândalo político no segundo mandato do presidente Ronald Reagan.

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