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Diotima, a instrutora de Sócrates

Por Birrel Walsh

Imaginemos uma jovem pesquisadora empenhada em saber como as mulheres contribuíram para a história da filosofia ocidental. Ela se voltaria primeiramente para a Grécia antiga e para Platão. Com sorte poderia encontrar o Simposium, onde Sócrates fala de algumas lições que recebeu, certa vez, de uma mulher de Mantinea chamada Diotima – uma mulher profundamente versada neste e em muitos outros campos do conhecimento.

Sócrates afirmou que Diotima é a fonte tanto da “ideia platônica” quanto do “método socrático”. Se levarmos Sócrates a sério, temos que acreditar que a tradição platônica não é absolutamente platônica – é diotímica.

Diotima ensinou a ascensão do particular ao principal. Essa não é uma abstração nominalista – simplesmente um nome para uma qualidade encontrada em todos os particulares – mas um progresso experimental para aquela essência que transformou o particular naquilo que é.

Em relação ao filósofo que busca a beleza, ela diz: “Irrompe sobre ele aquela extraordinária visão que é a própria alma da beleza pela qual ele tanto labutou. É uma amorosidade eterna que não vai nem vem, que não floresce nem se estiola: essa beleza é a mesma sempre, a mesma no passado e agora, tanto aqui quanto ali, dessa maneira como daquela, a mesma para cada adorador como o é para todos os outros.”

“Muito menos irá sua visão da beleza assumir a forma de um rosto, ou de mãos, ou de alguma coisa que seja de carne. Também não serão palavras, nem conhecimento, nem algo que existe em alguma outra coisa, tal como uma criatura viva, ou a terra, ou o céu, ou alguma coisa que é – mas subsiste de si mesma e por si mesma numa unidade eterna, enquanto cada coisa amorosa participa dela de tal maneira que, quanto mais as partes possam ter altos e baixos. não será nem mais nem menos, mas ainda o mesmo todo inviolável.”

Essa é a doutrina da forma perpétua, da qual os particulares extraem sua essência. Tudo que chamamos de platônico começou aqui, na muitas conversações de Sócrates com Diotima. Ela ensinou a Sócrates não apenas a ideia que seria chamada de “formas platônicas”, mas a paixão para alcançar essas formas perfeitas que inspirou o misticismo platônico desde então. Porém, ela discordava de muitos que iriam seguir Platão.

Muito do movimento platônico tornou-se asceta e quietista. Plotino prescrevia “O desapego de todas as coisas aqui embaixo, o desdém de todos os prazeres mundanos”. Enquanto a doutrina de Diotima afirmava a mesma meta unitária, o caminho para ela era muito diferente do caminho da retirada. A distinção entre sua prescrição para o candidato a filósofo e a de Plotino faz lembrar a diferença entre o tantra e as escolas mais ortodoxas de budismo e hinduísmo. A filosofia do tantra e a da ortodoxia são geralmente idênticas; mas a sadhsna, o exercício espiritual, difere profundamente.

A sadhana de Diotima afirmava a beleza, a ação política e o desejo da vida diária como parte do caminho, não como distrações para fora do caminho. Os moralistas instintivamente desconfiam da beleza e dela afastam seus discípulos; mas Diotima dizia que é o amor que leva à beleza, que a beleza tanto é o início quanto o fim do caminho, e que a verdadeira virtude flui do encontro: “E lembrai-vos que é quando ele aprecia o visível pressentimento da beleza, e só então, que o homem será estimulado à verdade, e não à virtude aparente – pois é a essência da virtude que o estimula, e não a parecença da virtude.”

Diotima também enfatizava a importância dos deveres do estado, e situa-se no topo da corrente de cidadãos místicos cuja contemplação levou à ação política: Sócrates, João da Cruz, Tereza d’Avila e Thoreau. Esse é um aspecto da contemplação ocidental que atrai o aplauso aturdido dos místicos asiáticos, que não têm essa tradição exceto onde ela foi introduzida a partir do Ocidente.

Diferentemente de outras culturas nas quais o sujeito contemplativo deve deixar a sociedade, na tradição diotímica o amor pela “beleza das leis e das instituições” é parte da ascensão ao belo. Assim, ela é uma ancestral dos filósofos que participaram dos governos do mundo designando, administrando ou protestando contra as leis do estado. Sócrates a seguiu em sua decisão de não fugir das leis de Atenas (embora isso lhe tenha custado a vida), porque as leis eram importantes mesmo para um filósofo. Platão concebeu e tentou criar uma utopia. São João e Tereza reformaram comunidades monásticas. Thoreau protestou contra as leis de uma nação escravagista.

Sacerdotisa, professora e filósofa

O coração da nossa hipotética estudante deve estar aos saltos, porque ela encontrou uma mulher na própria fonte da nossa tradição. A forma platônica e o método socrático vieram conjuntamente dessa mulher. Porém, se a estudante tentar descobrir mais a respeito de Diotima, verá que é como se estivesse entrando em outro mundo. Nenhuma das enciclopédias ou outras fontes de pesquisa menciona a pessoa que Sócrates chamou de sua instrutora.

Fontes mais especializadas mencionam Diotima, mas tendem a chamá-la de ficção, ou uma ficção com possível base histórica. Levin, após exame cuidadoso, decidiu que ela “pode ter sido, pelo que sabemos, histórica ou legendária”, embora tenha suspeitado de que ela fosse real.

O problema de se confirmar a existência de Diotima é que o único registro escrito contemporâneo a respeito dela é o Simpósio. Platão não fala sobre ela em nenhuma outra parte, e a menção seguinte sobre ela está na literatura clássica em Lucian, e em Máximo de Tiro no século II a.c., mais de cinco séculos depois. Ambos a tratam como se ela fosse real, como parte do pano de fundo cultural de uma grega no Império Romano da época. Mas Diógenes Laércio, que muitas vezes discute tradições conflitantes e não hesita em dizer que Pitágoras poderia ter tido uma instrutora do sexo feminino, não faz qualquer menção a ela.

Será Diotima, então, uma figura plausível? E será razoável que as fontes de sua própria época silenciassem a seu respeito? Há muitas questões levantadas sobre isso. Poderia uma mulher ter viajado e sido recebida com respeito longe de sua cidade de origem? Poderia ter sido filósofa e instrutora na época de Sócrates? Poderia a maioria de seus contemporâneos ter guardado silêncio sobre essa pessoa e seus ensinamentos?

Certamente Diotima poderia ter viajado e sido respeitosamente recebida em Atenas, se fosse sacerdotisa. Sócrates faz com que ela pareça exatamente isso: “Foi ela que produziu o adiamento de dez anos da grande peste de Atenas por ocasião de um determinado sacrifício.” Havia mulheres ocupando a posição de sacerdotisa em todo o mundo grego, em Delfos, em Atenas no templo de Atena, no templo de Zeus em Dodona, como sacerdotisas de Deméter e, certamente, de Dionísio. Sabemos que as sacerdotisas viajavam para outras cidades, pelo menos no século II a.c., segundo uma carta de Delfos em honra à sacerdotisa Chrysis, que visitava Atenas.

Podemos localizar com precisão o período em que Diotima esteve em Atenas. A peste ocorreu em 430 a.c. Sócrates registra que ela adiou a praga durante dez anos por meio de um sacrifício que teria exigido uma viagem a Atenas, sendo assim razoável pressupor que ela esteve em Atenas em 440 a.C. A guerra do Peloponeso não recomeçaria durante vários anos. A viagem da cidade de Mantinea, no Peloponeso, até Atenas era comum na época.

Poderia uma mulher ter sido filósofa e instrutora? Lucian e outras fontes antigas mencionam Thargelia de Mileto, cortesã e sábia do século VI. Diógenes menciona a tradição de que Themistoclea, uma sacerdotisa, ensinou a Pitágoras, que morreu em 500 a.c. Sabemos que a esposa de Pitágoras, Theano, foi a chefe da ordem pitagórica após a morte do marido no século VI a.C, e que os pitagóricos estavam em Atenas. No século III a.C, Hipparcea era filósofa em Atenas. Assim, o mundo clássico recente lembra que houve mulheres filósofas antes e depois de Sócrates.

Temos a palavra de Plutarco de que Sócrates levava seus alunos para ouvir Aspásia, a cortesã, política, hábil em retórica. Em Menexenus, Sócrates cita um discurso que ela compôs. Então a resposta é sim, uma mulher poderia ter sido instrutora em Atenas naquela época, especialmente se ela ensinasse a um homem que era incomum entre os atenienses por acreditar que as mesmas qualidades constituíam virtudes num homem e numa mulher.

Não há evidência no Simpósio nem no Menexenus de que Sócrates recebia lições de Diotima ou de Aspásia em público. Os companheiros de Sócrates poderiam ter tagarelado a respeito de suas visitas a Diotima e à escola de cortesãs de Aspásia. A verdade era mais escandalosa do que eles supunham: ele era “um homem aos pés de uma mulher”, aprendendo com ela.

Aspásia era conhecida dos autores clássicos como uma mulher de influência, mas não Diotima. Se houve tal mulher, por que não existe menção em Platão? E por que não existe registro além daqueles de Platão sobre o testemunho de Sócrates?

Estivemos adivinhando que Sócrates conheceu Diotima em 440 a.C; Platão não nasceu antes de 428 a.c. Os anos entre 440 e o discipulado de Platão junto a Sócrates foram tempos de grande tensão, de pragas e de guerras entre Atenas e Esparta. Diotima falava com simpatia sobre as leis de Esparta. Mantinea, sua cidade de origem, estava do lado espartano durante a guerra do Peloponeso. Teria sido uma atitude sábia para um estrangeiro inimigo com tais opiniões deixar Atenas.

Por que ninguém mais registrou os ensinamentos de Diotima? Encontramos uma explicação possível nas metáforas que Diotima usa no Simpósio. Ela se refere ao aprendizado do amor como uma iniciação aos Mistérios.

Para nós, numa época com poucos Mistérios geralmente respeitados, é difícil conceber que durante séculos homens e mulheres pudessem ter sido iniciados nos Mistérios Órficos, Pitagóricos e Eleusinos sem ter deixado um registro escrito detalhado. Contudo, esse é o caso. Sabemos que os Mistérios existiram, mas temos que fazer suposições quanto ao que continham a partir de alusões escritas indiretas e fragmentárias como as constantes no Meno. Diógenes Laércio cita Aristoxenus, que a respeito de Pitágoras disse: “Nem todas as suas doutrinas eram para ser ouvidas por todos os homens.” Na Grécia, as doutrinas secretas eram lugar-comum. Diotima repetidamente falava de sua filosofia como se fosse um mistério.

É concebível que Diotima estivesse iniciando Sócrates num dos Mistérios. Se ela fosse instrutora dos Mistérios (como as mulheres podiam ser), sua mobilidade e boas-vindas a Atenas teriam sido menos surpreendentes. A informação dada na iniciação tradicionalmente não era escrita, e uma iniciação metafórica jamais poderia ser transcrita pela pessoa que a recebe. Foi Platão quem transcreveu a descrição de Sócrates, anos após o evento.

Os Mistérios eram não apenas eventos secretos, eram também continuações de tradições orais. A geração seguinte não lia o que era passado adiante. Em vez disso, ouvia e via. Entre os estudantes dos Vedas na Índia, até o século XIX, o conhecimento mais importante (o próprio corpo védico) raramente era anotado, embora os comentários o fossem. Escrevê-lo era poluí-lo. Teríamos pouca coisa do próprio Sócrates se Platão não tivesse anotado o que ele dizia.

Não é surpresa, então, que um filósofo pudesse ensinar e que nenhum registro escrito fosse feito. Somos um povo do livro, dizemos “quero isso escrito”, mas escrever no tempo de Sócrates não era o único meio de transmissão, nem mesmo canônico.

Sendo assim, Diotima existiu? Os eruditos dizem que Platão jamais nomeou um personagem que tenhamos descoberto ser fictício. Vimos que uma mulher poderia ter viajado de Mantinea a Atenas e ter sido bem recebida, especialmente se fosse sacerdotisa. Vimos que uma mulher poderia ter sido filósofa e iniciadora. E vimos por que nenhum outro registro de seus ensinamentos poderia ter chegado até nós. Ou seja, temos um caso prima facie de que Diotima pode ter sido real.

A busca que não começou

Isso, então, é o que podemos oferecer à estudante em busca de mulheres na filosofia antiga: a tradição diotímica. Podemos acreditar no próprio Sócrates quando diz: “Esta, Fedro – esta, cavalheiros – era a doutrina de Diotima. Fiquei convencido, e nessa convicção tento trazer outros ao mesmo credo, e convencê-los de que, se temos que transformar isso em um presente para nós, o amor ajudará nossa natureza mortal mais do que todo o mundo.”

A erudição clássica tem dois milênios e meio. Ninguém duvidou com seriedade, até alguns poucos anos atrás, de que fossem homens falando a homens a respeito de homens. Teria sido quase uma zombaria sugerir que a tradição de Sócrates, Platão, Aristóteles, Agostinho, El-Ghazali, Thomas Morus – de todos eles – originou-se do pensamento de uma mulher.

A respeito da outra instrutora de Sócrates do sexo feminino, Aspásia, Menexenus protestou: “Verdadeiramente, Sócrates, me admira que Aspásia, que é apenas uma mulher, fosse capaz de compor tal discurso – deve ser uma mulher rara.” Sócrates respondeu: “Bem, se és incrédulo, podes vê-la comigo e ouvi-la.” E assim fizemos. Ouvimos Diotima, sem saber seu nome, durante 24 séculos.

Podemos esperar encontrar em algum lugar um texto ou artefato para estabelecer sua realidade. Assim como se pensava que Troia fosse legendária até ser descoberta, Diotima será uma presença nas sombras até que encontremos evidências irrefutáveis de sua existência. Aquele que encontrar Diotima encontrará a mãe da filosofia ocidental.

BirreJl Walsh é jornalista, escritor e técnico da emissora ele televisão KQED, nos EUA.

Revista Sophia – Editora Teosófica

Fonte: Sociedade Teosofica no Brasil

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