Colunistas Márcia Simões Lopes

O Sonho da mulher Guarani

Por Márcia Simões Lopes.

 “Quando você tomar conta da terra, ela o nutrirá.”
Provérbio Havaiano
O encontro com a família Guarani e com a Celita Antunes, liderança Feminina da Aldeia Guarani Yynn Moroti Wherá, de Biguaçu- SC, proporcionou raros e maravilhosos momentos curadores e de alegria. Aproveitei a oportunidade, para uma
entrevista com a liderança dessa comunidade nativa.
Celita é Djatchuka, nome que recebeu de batismo.
Ela conta, que Djatchuka é uma deusa. Que mora no mar. Não se sabe especificar onde é esse mar; uma deusa que cuida da vida e da morte e que vem desse mar. Do universo. Vem de cima, entra pela terra, nossa Mãe Terra e sobe espalhando centelhas de vida que traz consigo. Djatchuka, vai derramando, desde debaixo da terra até a superfície e subindo ela segue semeando essa medicina da vida e da morte até unir-se a luz do sol. Momento quando ela dá a vida para toda a terra. Assim, todos os dias, noite e dia Djatchuka completa cada ciclo. Vai nas profundezas e sobe, nesse trabalho de semear a vida, levando a todos os que existem nesta terra.
 Essa é a função da deusa Djatchuka. Nome que Celita recebeu quando nasceu. Mas, na verdade, como ela conta, o nome foi escolhido antes de ela nascer.
 Tcheramoi,  sábio ancião da aldeia batizou sua irmã mais velha. Naquele mesmo dia, ele teve uma visão: precisava dar mais dois nomes. E disse, então, para a mãe de Celita que ela teria – num futuro – mais duas filhas. Porém, disse o ancião, as duas filhas já se manifestavam alí, naquele momento. Foi aí que ele a batizou, quando ainda ela não existia neste mundo ordinário. E assim, Tcheramoi lhe destinou o nome “Djatchuka”. Em ocasião que ela ainda era um espírito!
Quando Djatchuka nasceu, Celita apenas foi apresentada a ela!
Vivemos o Tempo do Resgate da Terra
“A consciência que o povo Guarani traz para compartilhar ao mundo, é:
unir, voltar à terra e plantar; reconectando com a natureza.” Djatchuka
Djatchuka ou Celita Antunes é conhecida Liderança Feminina dentro e fora de sua aldeia. É líder de Cerimônia de Temascal, Cerimônia de Planta de Poder, Cerimônia dos Quatro Tabacos, entre outras cerimônias nativas, de cura, milenares, passadas
entre as gerações.
Na aldeia, o trabalho realizado com mulheres compreende, desde sonhar a comunidade até planejar e a organizar o sonho. As mulheres se reúnem, para falar sobre várias coisas. Nas reuniões, nunca é tratado somente uma questão. A pauta é diversa porém cada tema traz relação com outro. E assim seguem os diálogos.
Quem cria e educa as crianças e os filhos na aldeia são as mulheres. Isso é parte da cultura Guarani. Nessa tradição indígena, a mulher é a liderança da comunidade! O homem faz parte da família; e toma suas decisões. Porém, é a mulher que movimenta e cuida, que educa e sonha como fazer acontecer a vida do seu povo.
Recentemente as mulheres tiveram uma visão curadora levando alegria à aldeia. Elas enxergaram o retorno à terra. O resgate do plantio na aldeia.
E a partir dessa visão a aldeia Guarani Yynn Moroti Wherá voltou a plantar! Reacendendo, a partir desse renovação, o velho talento feminino: o cuidar. O mesmo cuidar que move o amor, cuidando da terra que tudo dá a seus filhos.
O sábio retorno à terra como solução aos povos.
Com o passar do tempo as necessidades das aldeias, somadas às exigências e pressões vindas de fora, interferiram no modo de vida da população indígena. E várias tradições foram deixadas de lado, sem que isso fosse, inclusive, percebido. A corrida atrás do dinheiro sinaliza, o quão afastado o ser humano está da terra. E a constante sensação de falta, vem desse distanciamento com a terra; trazendo desafeto. Quando isso é compreendido, não há mais falta.
A visão das mulheres trouxe à aldeia o sentimento de rezar aos ancestrais, em Cerimônia de Planta de Poder” ocorrida,  recentemente. A aldeia está atenta aos rumos do seu povo; e seguindo a tradição, as novas lideranças estão atentas aos
cuidados, das próximas gerações.
Cerca de dois anos atrás, a maioria dos povos indígenas das várias regiões do país iniciou movimento de resgate da língua natal. Alguns povos quase perderam o saber da própria língua e isso significa a perda do conhecimento que a tradição traz. Em
Santa Catarina, além do Povo Guarani também estão envolvidos na retomada da terra o Povo Kaiagang, entre outros.
Criou-se a partir daí um lindo trabalho de educação escolar indígena, que teve como propósito trazer os professores mais velhos, para auxiliar no resgate de toda a comunidade. Reuniões e busca por informações com os mais velhos iniciaram a renovação junto aos novos professores. Um grande encontro aconteceu, reunindo cerca de quinhentas pessoas. Cada aldeia efetuou os levantamentos com seus anciões e após, as informações foram repassadas aos demais moradores.
Celita conta, da felicidade do ancião quando em sua casa chega um professor jovem, buscando conhecimento. Porque, diz ela, o ancião está repassando aos alunos, os seus saberes.
E é isso o que as mulheres guaranis planejam em seus encontros: trabalhar na terra, plantar, cuidar dos alimentos, ensinar as crianças a plantar. Dessa forma as mulheres estão, permanentemente, preparando a terra para os próximos sonhos.
A partir desse diálogo, envolvendo a terra, conversam sobre como educar as crianças, os cuidados com a mulher, falam de saúde, o jeito de alimentar as crianças e também conversam sobre os perigos fora da aldeia.
A líder das mulheres, costuma pesquisar junto as demais aldeias e outros povos, para saber como eles estão abordando esses temas em seus territórios; conhecendo outras experiências. Dessa forma ela consegue aprimorar os mesmos cuidados, na própria comunidade.
Todo o conhecimento abordado, é feito dentro da Cosmovisão Guarani. Os cuidados, com saúde, na Cosmovisão Guarani partem do espírito, para chegar ao corpo, ensina Djatchuka.
Poucos se dão conta de que as sociedades modernas não têm o hábito de falar sobre o espírito. A literatura é o bom exemplo de que isso é uma verdade. Romances bem escritos, repletos de emoções, raramente apontam saídas que transcendem a limitação humana e que somente o conhecimento espiritual é capaz de orientar.
As sociedades não indígenas, inventadas pelo Homem, pelo colonizador, gananciosos invasores de territórios na busca de mais poder, estão alienadas das tradições e dos saberes milenares e estão, igualmente, dissociadas da Natureza. A história ocidental é
uma narrativa de ocupações, conflitos, suposições e guerras. Não dá importância ao conhecimento antigo, às tradições, aos valores e principalmente, ao humano. Os estudos acadêmicos das sociedades modernas se resumem em disciplinas e profissões, tais como, Antropologia, História, Geografia, Agronomia, Arquitetura, Medicina, Botânica … tratados, de maneiras compartimentadas; separados, como se a vida não tivesse sido provida, a partir do Todo. Coube, ao espírito, nesse mundo fracionado e separado, ser tratado, como religião. E não, cuidado como verdade, uma verdade natural da vida – princípio que nos trouxe e nos sustenta aqui, sobre a terra.
Depressão e Solidão na Cosmologia Guarani
Partindo dessa direção, Celita fala da sua visão a respeito da solidão.
“Consequência da separação”, diz a líder “a solidão está atingindo as pessoas, decorrência da falta de cuidados com a saúde, como um todo”. Para compreender onde começa o fio da meada, ela explica que na aldeia, a educação é tratada desde que a criança nasce.
A mulher grávida, recebe tratamento diferenciado. Com massagens e chás apropriados e é conversado sobre o dia a dia dela, como ela deve se alimentar, os exercícios que podem auxiliar na saúde dela e do bebe. Quando a criança nasce, são feitos banhos com ervas especiais, massagens com óleo apropriados. É ensinado à mulher sobre o cuidar da criança; como cuidar de uma simples gripe e como ensinar essa criança a caminhar.
Aquilo que a criança está aprendendo é um cuidado para a vida toda.
Na tradição Guarani, saúde é, primeiro, cuidar da alma e do espírito. Saúde é estar em paz. Em alegria. Não adianta a pessoa aparentar estar bem e por dentro a pessoa estar triste. A tristeza e a solidão,  são,  para o Guarani, doenças graves. Dores e energias que se apegam ao corpo indicam que o espírito está fraco.  Então, diz Celita: vamos curar. E quando se fala em cura está se falando da cura da alma e do espírito.
“Quando o Guarani diz que vai se curar, ele não está dizendo de uma cura na perna ou de um braço. Ele se refere a cura do espírito. Curando o espírito tudo se cura” diz a líder Guarani.
A palavra “cura” nas sociedades modernas traz sentidos diversos; sobretudo, se refere às doenças do corpo. Longe de ser esse o entendimento do indígena, que quando verbaliza a palavra “cura” está se referindo às enfermidades do espírito.
Desde que começou a trabalhar com as mulheres da aldeia e as mulheres não indígenas,  Celita se dedica ao entendimento de onde – ou quando – começaram os conflitos que hoje se manifestam nos relacionamentos conflitivos e na violência. Ela conta que tem percebido um certo descuido, com a criação da própria família.
Refere-se, aos descuidos com os filhos. Sua observação assinala, que cada família educa do seu jeito, de forma separada. E essa estranha forma de convivência se apoderou da humanidade.
Essa forma de relacionamento é causador de distâncias – a separação do ser humano do seu próprio coração; levando a pessoa envolver-se com energias estranhas a sua humanidade, como é a energia da disputa. Há muita ambição e muito ódio nas pessoas.
Há muita solidão também.  Separadas da própria essência, as pessoas se perderam do propósito do espírito. Dessa forma, os relacionamentos tornam-se cada vez mais difíceis e as vezes elas optam, por ficarem sozinhas. Separadas. Vivendo distantes delas mesmas e umas das outras.
Celita diz que esse distanciamento vem de lá de trás. Do descuido de dentro da família. Vem, de uma falta de amor.
“Nas cidades”, diz a líder Guarani, “as pessoas moram coladas umas nas outras mas não conhecem o vizinho. Uma multidão de gente e todos sozinhos. Muitos chegam na aldeia, doentes, buscando auxílio. A doença, é, a solidão. Chegam, traumatizados e
estressados. A depressão é a doença que mais chega na aldeia. E vem, dessa solidão. Dessa falta de acolhimento. Desse abandono um do outro”, conclui.
Em seu trabalho de campo, como Professora, desenvolvido no curso de Pedagogia, Celita relata ter visto muitos professores experienciando a solidão. Em seus trabalhos espirituais fora da aldeia, a líder Guarani relata a depressão e a solidão, adoecendo,
o corpo físico das pessoas. “Estão todos correndo; correndo para lugar nenhum. O capitalismo só quer produzir e as pessoas estão correndo atrás do dinheiro” diz.
Na aldeia Guarani eles se reúnem. Para compreender o que neste momento acontece com a humanidade. Os indígenas querem aprender lidar com doenças que – ainda – não existem na aldeia. Para que possam cuidar dos que buscam auxílio e igualmente
cuidar dos que podem ser atingidos pela doença, dentro da aldeia. É temido que isso possa ocorrer.
Um dos motivos da depressão alcançar a aldeia, principalmente as mulheres, é a falta de cuidados.  Esse cuidar mencionado acima também relacionado à terra e que esteve um pouco
esquecido, ultimamente, no dia a dia de cada uma. Incluindo o cuidado com o corpo. Voltando às reuniões com mulheres,  sempre é recomendado o cuidado nas várias fases da vida.  Para que o corpo não adoeça num único instante de fragilidade.
Perguntei para Celita porque as mulheres e não homens participam das reuniões de planejamento e cuidados da comunidade. Ela respondeu que os homens podem participar. Ocorre que é a mulher que cuida das crianças. Quando convocam
as mulheres para a reunião ela já sabe que as crianças irão, participarão e dentro do tempo delas aprenderão, também. Mas, se são os homens convocados, eles comparecerão sozinhos. Sem as crianças. E como foi dito, as crianças fazem parte do processo de aprendizado. É importante que estejam juntas.
“A mulher”, diz Celita, “deve se proteger da friagem principalmente na cabeça. O cuidado deve ser maior quando está menstruada. A proteção dessa parte do corpo é importante para impedir o desenvolvimento da doença. O resguardo das dietas também é recomendado.  Nos períodos quando a mulher está sangrando ela não deve comer doces e deve manter-se agasalhada. Longe de friagem. Com alimentação quase sem sal e totalmente sem açúcar”. “Com o rapaz” prossegue, “o procedimento é igual.
Quando ele está trocando a voz é feito o ritual de passagem onde o homem fica mais isolado. Ele não toma banho em água fria, nem bebe água gelada. A friagem é evitada justamente para proteger o corpo, de doenças. Diferentemente da mulher cuja parte sensível do corpo é a cabeça, o homem tem mais facilidade em adoecer na parte do peito, trazendo tristezas.  Se ele não cuidar, posteriormente virá a depressão” completa.
Muitos desses cuidados estiveram enfraquecidos dentro da aldeia, por conta das interferências vindas de fora. Para os guaranis, não conseguir viver a própria cultura e tradição, faz com que o homem adoeça.
O retorno à terra, trouxe de volta, o bom cuidar!
Cuidar – o Grande Poder Feminino
As cerimônias que acontecem na aldeia, são encontros para falar da vida.
Os mais velhos falam. Os mais novos ouvem. Os rituais servem para que não se esqueça a tradição e o conhecimento antigo. Servem para lembrar o cuidado com o fogo, o cuidado com a vida…
É o meu papel fazer isso, diz Celita.
Ela conta que aprendeu seus conhecimentos com a anciã Rosa Poty Dja e com Maria Erma Takua, sua mãe, grande conhecedora de plantas e ervas medicinais. Com anciã Rosa Poty Dja aprendeu o conhecimento do mundo espiritual, como cuidar das medicinas,  como acender o Petygua – caximbo guarani e outros saberes. Com sua mãe aprendeu como plantar, tocar e cheirar a planta. Sua mãe lhe ensinou tudo sobre as medicinas de cada planta. Até o momento quando fez a passagem para o lado de lá do acampamento, cerca de seis anos atrás.
E foi nesse momento que Djatchuka tomou a decisão de desaguar os conhecimentos e os saberes que aprendeu.
Djatchuka diz que as mulheres não indígenas estão desequilibradas, em seu masculino e em seu feminino – que devem andar juntos. Diz que as mulheres foram muito reprimidas e que querem agora dar um salto. Não observando questões sutis, básicas e inerentes, ao Feminino.
Ela percebe, que quando é dito a outra mulher do talento cuidador que ela
possui- enquanto Poder Feminino – e o que ela pode fazer com essa força cuidadora, a mulher entende de uma forma distorcida a fala desse “cuidar”. Entende, como se estivesse voltando a ser aquela “dona de casa” que o patriarcado escolheu por ela e para ela. Mas não é isso. Não é esse o significado do cuidar. Cuidar, é um dom poderoso que toda mulher traz com ela.
“A mulher é muito poderosa. Ela consegue tudo. Tem capacidade de gerar vidas. De gerar sonhos. De fazer coisas que os homens acreditam que são da capacidade deles. A mulher é muito mais forte que o homem. Se a mulher busca esse conhecimento, na sua
natureza cuidadora, começando pelos cuidados com ela própria e pelo cuidar de dentro de casa, da própria família, ela consegue mudar o mundo” diz Djatchuka.
Na visão da líder, o mundo somente será mudado quando essas mulheres acordarem. Ela conta, que quando a mulher permite conhecer o seu Feminino, ela consegue ser aranha. Para tecer as amizades – as relações – e estabelecer a conexão direta com o
Todo e o Tudo.
Para ela, é esse equilíbrio que está faltando ao mundo.
Se cada um assumir e tomar consciência do seu papel, o mundo entrará em harmonia, diz a líder guarani.
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