Para Maria Fernanda Góes
Solidão é lava
Que cobre tudo
Amargura em minha boca
Sorri seus dentes de chumbo…Solidão, palavra
Cavada no coração
Resignado e mudo
No compasso da desilusão…Viu!
Desilusão, desilusão
Danço eu, dança você
Na dança da solidão…(Dança da Solidão – Paulinho da Viola)
Em 2007, ainda titular de uma vara da infância e da juventude, fui convidada pela amiga e também juíza do Rio de Janeiro, Andréa Pachá, a integrar o comitê que criou os cadastros nacionais da infância do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[1].
Pachá foi conselheira na segunda composição do CNJ (2007-2009) e, com sua acurada visão sobre democratização do acesso à Justiça, compreendia os cadastros como ferramentas tecnológicas que facilitariam a fiscalização e controle das medidas (protetivas e socioeducativas) aplicadas a crianças e adolescentes e – primordialmente – encurtariam os prazos de espera para a solução dos casos, especialmente para as dezenas de milhares de institucionalizados.
Ao longo dos dez anos que se seguiram, os cadastros tornaram-se um “elefante branco”, um entrave ao invés de um adianto. Tudo graças à má gestão (ou abandono mesmo) dos sistemas. A começar pela extinção do comitê, cuja existência deveria ser permanente, a fim de acompanhar sua implementação pelos tribunais e realizar, sempre que necessário, atualizações e ajustes.
Tal extinção (da qual eu e os demais membros só tivemos ciência com a publicação do ato oficial) deu-se aparentemente por capricho do juiz auxiliar da Corregedoria à época, Nicolau Lupianhes Neto, do TJMG[2], o qual se entendia apto a dar conta do recado sozinho (com o auxílio somente de uma excepcional servidora, a quem eram dirigidas todas as dúvidas e questões atinentes aos sistemas, a qual acabou deixando o CNJ e retornando ao STJ, de onde fora cedida).
Seguiram-se, também, inúmeras alterações dos cadastros, ao sabor das administrações, pois – como é facilmente constatável – cada gestão faz questão de “deixar sua marca”. No caso dos cadastros da infância, essas tentativas de “invenção da roda” implicaram em mutilações que virtualmente tornaram os sistemas inócuos e inoperantes.
Numa determinada época, a Corregedoria do CNJ decidiu “simplificar” os cadastros, eliminando informações que considerava deixarem os sistemas muito pesados, como, por exemplo, os relatórios psicossociais e fotografias das crianças e dos pretendentes à adoção. Ocorre que os relatórios, em especial, são precisamente as informações mais requisitadas pelos usuários dos sistemas.
Sob a batuta do atual Corregedor Geral da Justiça, Ministro João Otávio de Noronha Dantas, e coordenação da juíza auxiliar Sandra Silvestre (TJRO), que pouco ou nada entedia do riscado, diante de reclamações de todos os lados, instituiu-se um grupo de trabalho para levantar, “com apoio de juízes da infância e da juventude de todo o Brasil, bem como de equipes técnicas e usuários, todas as demandas relativas à utilização do Cadastro Nacional de Adotantes, do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas e do Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei” e, diante do apurado, propor melhorias nos sistemas de informações.
Parecia que, enfim, dava-se voz aos milhares de adotantes, que sofrem com a demora das habilitações e dos processos de adoção, e aos juízes e operadores dos sistemas, que os encaram como uma mera tarefa burocrática, um ônus sem utilidade prática (só as crianças, coitadas, nunca têm vez/voz para reclamar, mas o fariam se houvesse um canal para isso).
Porém, passado mais de um ano desde a instituição do dito GT, pouco se vê de efetividade na solução do problema que eu chamaria de descompasso entre sistemas rígidos e estáveis de manejo de dados e a pulsante realidade e dinamismo das relações que se estabelecem na vida real (entre habilitados e crianças aptas à adoção; entre crianças depositadas em instituições e suas famílias biológicas; entre equipes de entidades de acolhimento e equipes judiciais etc).
Dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça dão conta da existência de mais de 45 mil crianças e adolescentes institucionalizados (vivendo nas chamadas “instituições de acolhimento” ou Programas Família Acolhedora), dos quais apenas 8 mil estão em condições de serem adotados por uma nova família. Ao mesmo tempo, há mais de 40 mil famílias inscritas para adotar.
A lentidão na resolução da situação das crianças afastadas de suas famílias de origem tem causas múltiplas, porém a menos falada e de maior dificuldade de solução (especialmente ideológica[5] e de direcionamento de verbas) é a ausência ou deficiência dos recursos humanos incumbidos de desenhar o futuro familiar dessa enorme população de acolhidos.
Exemplifico com um caso narrado recentemente por um amigo advogado de Minas Gerais, contratado por casal que tenta, há dois anos, a adoção de duas irmãs, uma com 9 e a outra com 4 anos. O adotante é manobrista e a adotante é dona de casa. Pessoas bem simples, ela sem filhos e ele com filhos adultos, de união anterior. Em audiência, a mãe biológica já declarou não querer ficar com as filhas.
O que faltaria, então? Meu amigo partiu da capital de seu estado para a comarca de interior, 168 Km distante, para despachar com promotor e juiz, e, como ele disse, “com espírito armado”: uma gana de “xingá-los”, no mínimo, de desidiosos, já que nem o pedido de liberação das meninas para passar o Natal com os requerentes fora apreciado. E o casal estaria a ponto de desistir da adoção…
No dia seguinte, perguntei como tinha sido. E meu amigo, em sua resposta, sintetizou o X da questão que trago aqui: “você acredita que eu nem peguei pesado? Eles vieram com muita humildade, tanto o Promotor como a Juíza. (…) Ambos foram muito solícitos. Assumiram a incapacidade de estar cuidando de vara da infância, crime…, enfim, tudo. Um juiz pra tudo. Não que justifique, claro que não. E eles assumiram isso (…).”
Vejam bem! O casal assistido pelo meu amigo nunca esteve à procura de uma bebê menina, loura, de olhos azuis e até dois anos (perfil recordista de buscas no CNA), mas de crianças negras, com mais de 3 anos de idade, sendo duas irmãs (raridade das raridades é quem queira adotar duas crianças de faixas etárias tão distintas entre si). O Brasil não carece de uma chamada “cultura de adoção”: ao número de inscritos no cadastro de pretendentes à adoção, somam-se milhares de pessoas que – por motivos diversos (sendo o principal a “burocratização” dos processos) – ainda buscam adoções “fora do cadastro”.
Nesse sentido, verifica-se que o CNJ vem tentando, através das medidas de aperfeiçoamento do funcionamento e uso dos cadastros, resolver uma questão que pouco tem a ver com a utilização dos sistemas. Ou seja, o foco está equivocadamente lançado sobre os recursos técnicos, quando a problemática está muito mais ligada – como se percebe do exemplo acima – à questão dos recursos humanos.
Fala-se muito da denominada “conta que não fecha”: a disparidade entre o perfil desejado pelos adotantes e o perfil das crianças e adolescentes interessados em adotar. Mas pouco se fala que crianças e adolescentes passam anos institucionalizados (apesar da determinação legal de revisão da necessidade de manutenção da medida a cada seis meses, no máximo) por pura ausência de subsídios para julgar as ações. E que o prolongamento desse acolhimento acaba por gerar consequências psíquicas nas crianças que dificultarão sobremaneira sua adaptação ao “mundo externo”: quer de volta à família de origem, quer numa família adotiva.
Principalmente nos rincões do país, a inviabilidade de manejo e controle dos acolhimentos e processos correlatos, conferindo-lhes a prioridade absoluta que a Constituição da República e o Estatuto da Criança e do Adolescente preconizam, decorre da carência de recursos humanos: faltam equipes nas unidades de acolhimento, para analisar com presteza se a família de origem reúne condições para ter suas crianças de volta; da mesma maneira, faltam equipes técnicas nas varas, para, com seus pareceres, subsidiar as decisões judiciais. Faltam, por fim, juízes especializados nas questões da infância e juventude, pois as varas abarcam competências múltiplas e urgentes: criminal, com réus presos; fazendária, com as demandas referentes a medicamentos; família, com processos e execuções de alimentos etc.
Creditar às prometidas melhorias no sistema informatizado uma suposta mudança no panorama das adoções é uma doce/amarga ilusão. Brasil adentro, o GT do Conselho Nacional de Justiça vem propagando, em “workshops” realizados, a ideia de que “o novo cadastro (…) permitirá a pretendentes à adoção uma busca mais rápida e ampla de crianças, (e) é resultado de propostas aprovadas pela maioria dos servidores e magistrados que participaram de debates nas cinco regiões do País (…), organizadas pela Corregedoria”[6].
Parece mesmo que a participação “maciça” de servidores e magistrados legitimaria a “nova versão” dos sistemas, mas nem a presença de juízes e servidores foi tão expressiva assim e tudo indica que eventuais alterações constituem mais pirotecnia (“para inglês ver”) do que efetivas.
Existe um descompasso cronológico que só quem já viveu de perto a realidade de crianças e adolescentes institucionalizados realmente compreende. É como se, para nós aqui fora, os ponteiros do relógio andassem normalmente. Mas, para eles, os ponteiros girassem em vertiginosa velocidade: cada dia no acolhimento representa anos-luz da possibilidade quer de regresso ao lar da família biológica quer de inserção em uma família nova, através da adoção.
Como no exemplo do amigo advogado, diariamente milhares de crianças acordam com a expectativa de deixar os “abrigos”[7]. Frustrada – não pela inoperância de um sistema, um cadastro – pela falta de um profissional que tenha tempo de vê-las e de cuidar de suas vidas com a rapidez que fariam se no colo desse profissional houvesse uma “bomba-relógio”, com um tique- taque bem acelerado, no ritmo dos ponteiros do relógio da infância institucionalizada.
Se parece que defendo a eliminação dos cadastros, não se trata exatamente disso. Os cadastros não são, por essência, inúteis. Mas certamente eles não suprem as ações humanas que conduziriam a uma maior rapidez na resolução dos casos. Ao contrário, ocupam essa mesma mão-de-obra na tarefa inglória de preencher informações para “alimentar” sistemas…
Uma outra amiga, jovem advogada, narrou-me sua história pessoal de adoção. Num dado dia, seus pais (que não podiam ter filhos) depararam-se com uma linda bebê na porta de casa. Acolheram a criança, buscaram saber com um médico sua data aproximada de nascimento e a registraram em nome próprio (crime do artigo 242, do Código Penal, com pena de 2 a 6 anos de reclusão). Hoje, minha amiga é feliz, bem resolvida e bem sucedida. Sem ter que ter passado por qualquer cadastro ou juiz.
Repito: não sou contra os cadastros, mas eles não podem inviabilizar adoções. Se fosse na “era dos cadastros”, minha amiga bebê possivelmente seria encaminhada a um abrigo, onde aguardaria (sabe-se lá por quantos meses ou anos) estudos técnicos e decisões que possibilitassem seu encaminhamento a uma família habilitada, se é que haveria habilitados em sua cidade, no interior do estado. Mesmo assim, os requerentes da adoção não seriam seus pais, já que não estavam cadastrados. Talvez minha amiga tivesse tido outro destino… Talvez não fosse a profissional e mulher feliz que é hoje.
Sem demonizar os sistemas de informações, o que se deve perseguir é a efetiva prioridade no andamento das causas referentes a crianças e adolescentes. O CNJ tem meios de obrigar os tribunais a dotar serventias de juízes especializados e de técnicos capacitados. Há, aliás, o Provimento 36/2014, da Corregedoria Nacional da Justiça, de maio de 2014, e ainda vigente, dispondo sobre estrutura e procedimentos das varas da infância e juventude.
Se houvesse varas privativas nas comarcas com mais de 100.000 habitantes, e se todas as varas com competência para infância e juventude (mesmo as que cumulassem outras competências) contassem com equipe técnica própria, composta por psicólogos, pedagogos e assistentes sociais, talvez não enfrentássemos esse triste quadro do acolhimento institucional no país.
Todos os dias, quase 50 mil crianças despertam com o desejo de estar nos braços e sob os cuidados de uma família.
Para eles, o tempo tem efeitos infinitamente mais deletérios do que para quem está “do lado de fora”. Em época de troca de dentição (tão celebrada nas famílias), as ditas “janelinhas” também se abrem para os acolhidos, mas as portas se fecham e se trancam.
Assisti, com a visão embaçada pelas lágrimas, aos vídeos encaminhados ao meu amigo advogado pelos requerentes da adoção das meninas de 4 e 9 anos. As irmãs falam da saudade que sentem dos futuros pais, contam as coisas que gostam de fazer e dizem que não querem muitos presentes de Natal: só um basta. Infelizmente, não puderam passar as festas de fim de ano ao lado da família que espera, há 2 anos, por essa adoção. Talvez fosse esse o presente que bastasse.
E ao CNJ, bastaria exigir o cumprimento do Provimento 36, de 05/05/2014. Repito: ainda vigente… Mas enquanto se discutem os “sistemas”, a vida segue para crianças e adolescentes sem famílias, no “compasso da desilusão”…
Cristiana Cordeiro é juíza de direito do TJ-RJ desde janeiro de 1998, integrante da Associação Juízes para a Democracia – AJD.
[1] Houve diversas composições dos comitês, cujos integrantes foram, além da subscritora: a própria Conselheira, Andréa Pachá (juíza do TJRJ), Luiz Carlos Barros Figueiredo (desembargador do TJPE), Francisco de Oliveira Neto (juiz do TJSC) e Antonio Silveira Neto (juiz do TJPB).
No comitê do CNACL – Cadastro Nacional dos Adolescentes em Conflito com a Lei, sai o Des. Figueiredo e entra o Juiz do TJDF, Renato Rodovalho Scussel –http://www.cnj.jus.br///images/atos_normativos/portaria/portaria_477_17022009_19102012135757.pdf
Em algum momento, integrou o grupo o juiz do TJMT, Gabriel da Silveira Matos, auxiliar da Corregedoria Nacional da Justiça
[2] Nicolau é figura pouco conhecida na seara da infância e juventude, só lembrado (sem saudades) pelos que exerciam tal jurisdição naquela época, tanto que, depois de sua gestão, desapareceu por completo do cenário de magistrados ligados à matéria
[5] É inexplicável, por exemplo, que num estado do porte do Rio de Janeiro, todas as varas da infância com competência para medidas protetivas (parte cível) agreguem, minimamente, a competência para as causas do idoso! Houve proposta ao órgão especial, para criação, ao menos na Capital, de Vara do Idoso, rechaçada terminantemente.
[6] Fala da juíza Sandra Silvestre, em matéria do site do próprio CNJ, veiculada em 15/12/2017
[7] A nomenclatura mudou com a Lei 12.010/09, que alterou o ECA Lei 8.069/90, mas vamos combinar que não é o rótulo que define o conteúdo: a maioria das instituições ainda mereceria (sic) o título de “abrigo” e ainda guarda semelhança com os “orfanatos” da nossa memória histórica.
Fonte: http://justificando.com