Por Joana Salém.
Para Correio Cidadania.
A expressão “onda progressista da América Latina” tem sido usada como guarda-chuva para definir um conjunto de fenômenos políticos e sociais diversos nos primeiros 17 anos do século 21. Variados governos considerados de centro-esquerda, que a “priori” não possuíam uma articulação ou projeto comum, passaram a ser entendidos como uma espécie de “bloco histórico”, cujas expressões institucionais mais organizadas foram a Unasul e a ALBA.
Inaugurada com a eleição de Hugo Chávez em 1998, a onda progressista teria sido composta por representantes variados: Lula e Dilma no Brasil (2003-2016), Nestor e Cristina Kirchner na Argentina (2003-2015), Evo Morales na Bolívia (2006-hoje), Rafael Correa e Lenin Moreno no Equador (2007-hoje), Manuel Zelaya em Honduras (2006-2009), Daniel Ortega na Nicarágua (2007-hoje), Fernando Lugo no Paraguai (2009-2012), Tabaré Vasquez e José Mujica no Uruguai (2005-hoje) e eventualmente Ricardo Lagos e Michele Bachelet no Chile (2000-2010; 2014-2018).
Entre 2015 e 2017, em meio ao desmoronamento e fragmentação desse bloco e o retorno da direita tradicional ao centro do poder (sustentada pelo agitprop de uma nova direita)*, tem emergido nas esquerdas um esforço coletivo de compreensão e balanço sobre as conquistas, limites e falhas do progressismo latino-americano. Esse balanço é crucial para apontar os próximos passos da reorganização da luta popular, dar consistência ao aprendizado político vindo das derrotas e, principalmente, diversificar a imaginação de novos caminhos para superação dos velhos problemas.
Com esse texto, pretendo apenas reforçar dois argumentos: primeiro, que as diferentes táticas distributivistas dos governos progressistas para redução das injustiças sociais (e suas polêmicas) só podem ser compreendidas dentro do contexto mais amplo que a socióloga argentina Maristela Svampa definiu como “consenso das commodities”. Esse argumento projeta a questão ecológica ao centro do debate. Segundo, que a resistência a esse momento de agressividade neoliberal pode ser mais efetiva quanto mais agregar a diversidade e a horizontalidade dos novos movimentos e coletivos de esquerda das bases, com métodos e identidades próprias, constituídas por fora do oficialismo partidário, e cuja atividade militante tem delineado um novo horizonte de criatividade tática e programática para a luta popular. Esse argumento coloca no centro do programa a importância da quebra de velhas hierarquias dentro da esquerda.
Debate distributivo 1: igualdade ou assistência?
A “onda progressista” foi protagonizada pela questão distributiva, entendida como parte fundamental da consolidação democrática. No interior da questão distributiva, as esquerdas se dividiram em pelo menos duas clivagens fundamentais.
A primeira dizia respeito ao nível de radicalidade da distribuição, que podia mostrar inclinação para o assistencialismo ou avançar no rumo da igualdade social. A segunda revelava uma divergência sobre a substância da distribuição: deveria ser realizada via ampliação de direitos sociais (via Estado) ou aumento do poder de consumo (via mercado)? Esses debates foram relativamente interrompidos pela necessidade de resistir aos retrocessos da maré conservadora. Como a esquerda pode, hoje, retomá-los e reinventá-los?
Em países com altíssima desigualdade, como os nossos, existem várias camadas de redistribuição de recursos que podem ser exploradas antes que sejam tocadas as causas estruturais do problema social. Na virada para o século 21, os trabalhadores e pobres latino-americanos experimentavam uma verdadeira ressaca de ao menos 40 anos de repressão e arrocho salarial, ou seja, pelo menos três gerações que entraram no mercado de trabalho sob o predomínio da deterioração econômica e da defasagem democrática. Depois das décadas de ditaduras (1960-1970), da hiperinflação (1980) e dos anos neoliberais (1990), os efeitos subjetivos de uma leve mudança de sentido das políticas sociais podiam produzir hegemonias políticas decisivas.
Em outras palavras, na década de 2000, os governos da América Latina se viram com a oportunidade de conquistar amplo apoio popular por meio de um gasto público relativamente modesto, dentro das margens permitidas pelo neoliberalismo (sem alteração das suas cláusulas pétreas) e determinadas pelo excedente ampliado no boom das commodities. Eram condições históricas muito específicas, nas quais um forte sentimento popular de melhoria podia ser obtido com pouco investimento, tornando-se fiador de eleições e reeleições, favorecendo a possibilidade de troca de influências e exemplos entre os diferentes países.
Assim, qual seria o nível de profundidade desta redistribuição? Uma distribuição mais radical implicava aumentar o nível de enfrentamento com as elites internas e externas, como se deu na Venezuela, inaugurando a retórica do socialismo do século 21. Já uma distribuição mais moderada poderia ser pactuada com os setores dominantes, como ocorreu no Brasil, com a mistura de receitas do Banco Mundial com ingredientes nacionais.
Entre o Brasil, de um lado, e Venezuela, Bolívia e Equador, de outro, representantes mais nítidos da conciliação e do enfrentamento, variados matizes de distributivismo foram gestadas. Os governos de centro-esquerda da Argentina, Nicarágua, Uruguai, Honduras, Chile e Paraguai administraram o processo distributivo de maneira própria, com inflexões que oscilaram entre o lulismo, o neoliberalismo com rosto humano no Chile, o neoperonismo, o indigenismo e o bolivarianismo. O historiador Fabio Luis Barbosa dos Santos, no seu livro “Além do PT: a crise da esquerda brasileira em perspectiva latino-americana”, propõe que, nesse processo, o Brasil, mais que Venezuela, Bolívia e Equador, desenvolveu a capacidade de exportar seu modelo, influenciando o continente pelo exemplo da conciliação.
Debate distributivo 2: mais direitos ou mais consumo?
A segunda clivagem que dividiu o debate distributivo foi a polarização entre ampliação de direitos ou do poder de consumo. Alguns governos, como o venezuelano, optaram por enfatizar a distribuição de direitos, importando, por exemplo, saúde e educação da revolução cubana. Já na distribuição de bens de consumo, digamos que não se saíram tão bem. Outros, como o brasileiro, priorizaram a distribuição da capacidade de consumo, via aumento do salário mínimo, bolsa família, políticas anticíclicas que incentivaram o mercado interno, ampliação do crédito consignado etc. Mas foram insatisfatórios na ampliação de direitos.
Nessa clivagem, a questão não seria somente a substância da distribuição, mas também sua capacidade de aprofundar o processo democrático. Por um lado, a melhoria salarial promoveu ganhos materiais importantes para as classes trabalhadoras latino-americanas, que puderam incrementar seus níveis de vida em relação às décadas anteriores. Por outro, o ganho de poder de compra parecia insuficiente para superar barreiras de classe que não são formadas apenas por componentes econômicos.
Nesse sentido, as novas Constituições da Venezuela (1999), do Equador (2008) e da Bolívia (2009) apontaram para um caminho original, que ao menos em termos formais parecia aprofundar a democracia com novos procedimentos e marcos: a plurinacionalidade, a ênfase no direito à diversidade e nos direitos sociais, o princípio constitucional dos direitos da natureza, o recurso frequente aos referendos revogatórios e plebiscitos, entre outros.
Os notáveis avanços na condenação de ditadores e torturadores argentinos também configuraram um ponto de aprofundamento democrático sui generis no continente consolidando políticas vanguardistas de memória, verdade, justiça e direitos humanos.
Enfim, entre a “inclusão via consumo” e a “inclusão via direitos”, também se estabeleceram diferentes arranjos e matizes da onda progressista, demarcando variados graus de aprofundamento democrático. No Brasil, particularmente, a esquerda crítica da “inclusão via consumo” foi considerada elitista, enquanto a esquerda do governo foi denunciada por fazer concessões inaceitáveis. E nisso estávamos.
Silêncio incômodo: o “consenso das commodities”
Mas todo o processo distributivo latino-americano da onda progressista esteve alicerçado em economias primário-exportadoras, aproveitando as oportunidades abertas pela alta dos preços das commodities. Petróleo, soja, carne, cobre, ferro, trigo, milho, frutas, açúcar, café, lítio, madeira, gás, borracha, níquel… Uma lista como essa compõe nossa participação moderna na divisão internacional do trabalho.
A socióloga argentina Maristela Svampa tem alertado para o fato de que as agitadas polêmicas distributivistas se expressaram, sem exceção, sob a vigência de um consenso: o “consenso das commodities”. Ou seja, todas as tendências redistributivas se sustentaram sobre uma mesma estratégia produtiva: exportar matérias-primas para China. Quanto mais se polemizava sobre a radicalidade e a substância da distribuição, mais se evitava colocar em evidência o intimidante problema do modelo produtivo e da dependência estrutural.
Se por um lado a onda progressista foi multifacetada, por outro o neoextrativismo unificou a todos, dos mais radicais aos mais moderados. Reconhecer esse problema é fundamental para o entender o colapso, que não foi apenas uma consequência da eficácia da direita. Sem ele, não poderemos imaginar saídas transformadoras mais originais, que não sejam apenas repetições frustradas dos limites já experimentados na década passada.
Algumas perguntas podem impulsionar esse debate: seria a modernização neoextrativista conduzida pelo Estado “melhor” que a conduzida pelo mercado? Em quais aspectos? Seria a urgência (consensual) da redistribuição de renda uma justificativa suficiente para não repensarmos radicalmente o modelo produtivo?
A partir de 2015, os debates distributivos foram suspensos e substituídos pelo retorno de um pesadelo de larga escala. As imagens da repressão dos protestos contra a reforma da previdência na Argentina não nos deixam mentir. No centro da tormenta, como dizia Galeano, agora estão 170 milhões de crianças – e 70 milhões de idosos. Estamos todos sendo atropelados por uma moto-niveladora de retrocessos, com a condução ao poder de Temer, Macri, Piñera, Kuczynski e Trump, acompanhados pela crise na Venezuela, o novo golpe em Honduras, a deterioração das bases de Evo Morales, Rafael Correa e Lenin Moreno, entre outras más notícias.
Entramos em uma espécie de segundo round dos anos 1990, ideologicamente temperado pela propaganda da direita sobre o caos para onde nos levaram as gestões “populistas” da esquerda.
Como será possível equacionar a resistência com a reinvenção?
Reinventar para resistir. Fechar-se ou abrir-se para o balanço?
Com o desmoronamento da onda progressista, temos a tarefa inglória de resistir, o que exige a construção de algum nível de unidade contra o amálgama aterrorizante do fascismo social e do neoliberalismo político. Isso não quer dizer que o debate propositivo e programático sobre o futuro precisa ser suspenso, muito menos que as divergências realmente existentes devam ser disfarçadas.
Todos sabemos que a necessária “unidade da esquerda” às vezes é convocada para reforçar velhas hierarquias. Mas o tempo da resistência também pode ser o tempo de autocrítica, das diferenças, do debate horizontal nas bases, da recomposição de vínculos comunitários: um tempo de reinvenção. Precisamos nos dar o direito à dúvida, para gerar a possibilidade de respostas diferentes. Já faz muito tempo que as relações de poder na cultura de esquerda brasileira se impõem por um artificial excesso de convicção, por opções “corretas” e saídas “únicas”.
Por isso, há um componente positivo na crise das esquerdas oficialistas, que favoreceu a abertura, em toda a América Latina, de um novo fôlego para a experimentação política horizontal: movimentos ecológicos, feministas, LGBTQs, negros, indígenas, estudantis, de bairro, de juventude, da periferia, de comunicação livre, e milhares de outros. O exemplo da Frente Ampla no Chile e da dissidência indígena na Bolívia tem algo de inspirador. Há um novo sentido de horizontalidade que ventila a iniciativa do Vamos! no Brasil. Apesar do clima de derrota, há uma polifonia efervescente que mistura várias gerações em uma atmosfera de criação.
Novos e velhos lutadores têm conquistado territórios políticos de autonomia, pensamento e ação, sentem-se mais livres para questionar as verdades estabelecidas pelos ideólogos da onda progressista.
Proponho algumas perguntas podem alimentar essa reflexão:
Será que as esquerdas podem atravessar uma revolução interna enquanto constroem a resistência? No Brasil, como o PSOL, radical no conteúdo e conservador na forma, vai se relacionar com a pluralidade das novas iniciativas de luta?
Qual o papel da politização dos territórios do nosso cotidiano para reinvenção das esquerdas em bases mais comunitárias e menos oficialistas? Como articular as novas energias militantes com suas representações políticas sem reproduzir velhas hierarquias?
Em termos programáticos, como vincular a mudança do modelo distributivo (excludente) com a necessária transformação do modelo produtivo (dependente e neoextrativista)? Enfim, como conjugar economia popular e ecologia em uma mesma prática política?
E que venha 2018.
*
A direita tradicional parece cada vez mais depender de novos agrupamentos de direita, com suas inovações táticas e novas tecnologias políticas, em geral patrocinadas pela Atlas Network, como mostrou a reportagem de Lee Fang no The Intercept: “Esfera de influência: como os libertários americanos estão reinventando a política latino-americana”. Disponível aqui: https://theintercept.com/2017/08/11/esfera-de-influencia-como-os-libertarios-americanos-estao-reinventando-a-politica-latino-americana/